sexta-feira, 28 de setembro de 2012

NÃO DEIXEM A LENDA MORRER

             


          nÃO DEIXEM A LENDA MORRER




  "... e a terra o expulsou do seu ventre e o mar não o aceitou em suas águas e o fogo não consumiu aquele cadáver ... e ele secou." _  (folclore em todo o mundo).


                     Ouvi de um velho: A lenda não deve morrer para que os velhos que hão de vir, possam contar para os mais jovens e esses, quando ficarem velhos.  continuem contando ... "e  terra o expulsou do seu ventre..."


A "villa" de Torres no tempo da lenda.



               "A História é construída de fatos. A lenda de fantasias. A lenda não passa de ficção do espírito humano, com bases populares, e não precisa ter compromissos com a verdade, porém nada nos impede submetê-la a certa dose de crítica histórica, na procura da fagulha que poderia ter causado a fumaça". RRRuschel  
             " As lendas encantam e espantam".
                             
                                                     O Homem Seco da Igreja Matriz

           Na primeira metade do século vinte, milênio que passou, era fartamente contada na Villa de São Domingos das Torres e arredores uma Estória que dizia haver na Igreja Matriz um caixão negro e cujo conteúdo era de um homem seco (uma múmia). Um homem muito mau e por isso adquirira em vida muitos  pecados e quando morreu a terra não  o aceitou no seu ventre ...  E ele secou. E o corpo seco do homem mau foi parar na igreja onde as forças naturais do bem o acalmaram.
          Não  devemos esquecer que sempre houve  no folclore brasileiro e até mesmo universal estórias de gente seca _  pessoas que mumificaram naturalmente e para os amigos essa múmia era um santo, mas para os inimigos era uma coisa ruim, uma corama.

      Ali na, nossa antiga, vizinha Freguesia da Nossa Senhora da Mãe dos Homens do Grande Araranguá há muitos causos de gente seca. O padre João Leonir Dall'Alba no seu livro A História do Grande Araranguá nos cita alguns, vejamos:
          Ouvi falar que havia um padre  pendurado de batina, seco. Mas era no morro de baixo. Pag 81, entrevistado _  Helmuth Nagel em "10/09/1986".
          A "velha seca" estava pendurada no paredão, do lado de cá da estrada. Essa eu vi. Estava pegada no paredão e ninguém podia chegar lá. Pag 141, entrevistado _ Rubens Plácido de Souza "72" anos em "06/10/1985".
          Mas voltando ao homem seco da Igreja Matriz devemos lembrar que a mumificação natural é um processo normal, embora pouco comum, inclusive há um caso acontecido aqui em Torres e cuja prova está no museu Júlio de Castilhos em Porto Alegre.
         Porém vamos voltar no tempo e ouvir a nossa gente que viveram, na meninice a lenda do homem seco  aqui na nossa terra na primeira metade do século vinte e contada mais devagar na segunda metade, mas que ainda, hoje, ecoa nas mentes mais antigas.
          Dona Cota, em sua ingenuidade, à noite, contava em minha tenra infância para mim e minhas  irmãs, em forma de causo, a estória do homem seco, assim: "Era uma vez que no tempo da escravidão, existiu um homem muito mau o qual não respeitava as outras pessoas e não respeitava a natureza e nem os animais e que era um pecador. Por esse motivo quando morreu a terra não o aceitou no seu ventre ... e ele secou. E, então, as pessoas daquele lugar aconselhadas pelos velhos da região, resolveram colocar aquele corpo em uma canoa e jogá-lo lá, bem longe, no fundo do mar. Mas para surpresa de todos, aquele corpo chegou na praia antes dos canoeiros. Novamente orientados pelos velhos, as pessoas do lugar fizeram uma imensa fogueira e colocaram o cadáver no fogo, mas o fogo terminou e o cadáver não se queimou. Finalmente os velhos resolveram  que o  corpo do pecador devia ficar dentro da igreja".
            Mas a estória da Dona Cota ainda não terminou. "Segundo Ela, eis que chega na vila um novo pároco que vê aquele corpo que já era só um esqueleto desmontado, e resolve encomendá-lo a Deus para livrar a paróquia daquela maldição. E em um domingo, na hora da missa, o padre pegou a caveira do esqueleto pecador, sem saber que uma corja de marimbondos havia feito ali o seu "ninho". E o padre, sacudindo a caveira no ar e olhando para o céu orou assim: Caveira vai, caveira vem, mas nesse momento o marimbondo zangão sai da cachopa e "morde" o nariz do padre. O pobre representante do Crucificado dá um berro e joga a caveira cheia de marimbondos no meio dos fiéis, bradando: Caveira vai para o diabo que te carregue. Nós ríamos muito e Dona Cota acrescentava que naquele dia a missa terminou mais cedo e que o padre, mesmo dizendo que falou em latim, foi expulso da cidade; se teimasse em voltar levaria uma tunda".
            O padre foi embora, montado num burro, chamando o povo de ignorantes e rogando pragas para que Torres não evoluísse, agora, em um português bem claro.  E, depois das rezas, nós pedíamos a benção à Dona Cota e Ela nos abençoava, nos beijava.
             Ciro, O Velho, maleiro de profissão, marisqueiro, pescador, contador de histórias (ou estórias) e segundo dizem o maior dançador de valsa que Torres já conheceu, dizia que cansou de ver o padre seco da igreja. Contava essa história, sentado em um gramado defronte ao seu pequeno barraco para um bando de guris, e eu no meio deles.
           Jaci Freitas Grossman,  torrense, "69" anos e que morou e trabalhou muitos anos a poucos metros da igreja, disse que sua mãe contava que o padre Lamônaco era o homem seco da igreja.
           Ênnio Porto "75" anos, Torres:  ... o padre Lamônaco cujo corpo foi sepultado no cemitério velho, lá em cima do morro do farol, ocorre me a lenda de um defunto sepultado (?) na Igreja Matriz. Ela não se refere ao velho padre, como muita gente diz. Mas de outra pessoa: um Rodrigues, supostamente muito mau, quiça bandido. Crônica de 02/01/2004 publicado em 06/04/2010 em  :www.torres-rs.tv
          Jovina da Silva Coelho "90" anos em "1990", Passo de Torres, filha de José Rodrigues da Silva Filho: Dizem que o corpo do meu avô tá lá na igreja de Torres.
           Venina da Silva Rosa, Neta da Dindinha Velha, Torres: Quando eu era pequena, os adultos da família nos assustavam com o Homem Seco da Igreja São Domingos e diziam que ele era meu parente.
           Manoel Josino  que era de uma outra religião: Claro que "tá" lá. Sei até o nome dele, Manoel Rodrigues. Lá ele se aquetou, lá é a casa dele, referindo-se a igreja concorrente como sendo a casa do "adversário".

                              Todos os demais depoimentos foram colhidos no ano de "2012".

           Dona angelina, "80" anos, professora aposentada, Torres: Eu me lembro, eu era pequena, eu  vi o caixão. Eu tinha medo, estava lá no fundo da igreja. Eu sei até o nome dele: Manoel Rodrigues.
           Chiru Tropeiro,"68" anos, morador do Sombrio, radialista: Na lagoa do Sombrio tem a estiva dos Rodrigues. Uma noite um homem que era muito ruim passava a cavalo por ali e caiu em uma emboscada e foi morto a tiros. E nem a terra, nem água e nem o fogo quiseram aquele corpo pecador. Ele está lá na igreja de Torres. Quando era pequeno eu fui na igreja e vi, dentro de um caixão.
           Manoel Maciel, Hoteleiro, "86" anos, Torres: quando eu era pequeno eu vi o homem seco da igreja.
           Pedro Sacão, "75" anos agricultor e carreteiro, Torres: Eu me lembro dessa história, era um homem lá da Cachoera, na Praia Grande, um Rodrigues. Mas é uma bobajada. Num outro dia o seu Pedro Sacão me disse que falou com uma velha da família "Rodrigues" e ela disse que era verdade. O parente dela estava lá na igreja.
            Arlindo de Souza Cardoso, "76" anos aposentado e pescador e que trabalhou trinta anos a poucos metros da igreja: Eu nunca ouvi falar de homem seco na  igreja. Eu só sei da caveira que a terra não quis ...
            Pai Velho "72" anos pescador, Passo de Torres: Disse que tinha um parente muito antigo  que era muito ruim e que a terra não quis ... e que está enterrado atrás da igreja. A senhora esposa do Pai Velho conta a mesma estória do mesmo jeito. Pai velho é um Rodrigues da Silva. É neto de José Rodrigues da Silva Neto, também Pai Velho.
             Heitor Carneiro, "78" anos, funcionário aposentado, Torres: Quando criança eu fui lá para ver o homem seco, mas não tive coragem. Hoje eu sei que se trata da imagem sacra de Nosso Senhor Morto (fora da cruz) e que é carregado nas procissões pelos fiéis.
             Miguel Máximo "79"anos, construtor e pescador aposentado, Torres: Eu sempre ouvi falar, mas o que tem lá é o Nosso Senhor Morto fora da cruz.
             Ceni Nasário, "51" anos, Espigão de Barro: Meu pai contava que prenderam um homem aqui no Espigão de Barro e enforcaram lá no São João do Sul. Ele ficou seco e está lá na igreja de Torres. Como a senhora sabe que ele está lá? _ Eu vi. Quando? _  faz uns "15" anos.
           Edegar Bittencourt da Luz arquiteto responsável pela restauração da igreja matriz e veranista disse que não conhecia a lenda do Homem Seco, mas que imagem sacra do Nosso Senhor Morto fora da cruz está lá na igreja.
              Maria Borba Machado "66" anos Pirataba (Torres) _ O homem seco ainda tá lá na igreja. A senhora sabia que ele é lá da sua região? _ Não é verdade, lá nunca houve gente ruim assim. O corpo seco da igreja deve ser de um pirata que acharam na praia. Os piratas eram muito brabos.
             
             Há muitos outros depoimentos sobre essa estória do homem seco da Igreja Matriz, mas a ladainha é a mesma:
            " E a terra  expulsou do seu ventre aquele corpo pecador e o mar não aceitou em suas águas e o fogo não o queimou ... e ele secou".
               Onde estão os fatos que podem ter gerado a lenda? _ Vamos analisar aqueles que julgamos mais importantes:
                1°; Manoel Rodrigues da Silva, um possível miliciano catarinense  (RRRuschel indiretamente dá a entender), nascido em "1789" que juntamente com seu irmão Luciano, outro possível miliciano, adquiriram no ano de "1820", no lado catarinense, uma sesmaria com "18" km testando com o mar por "18" km de fundos e costeando o Rio Mampituba. No mesmo ano de "1820" o velho Neco com "31" anos casou-se com a torrense Cândida, filha do alferes povoador Manoel Ferreira Porto, ela com "14" anos.
             Segundo o padre historiador Raulino Reitz foi Manoel Rodrigues da Silva o (Velho Neco) quem construiu a capela, hoje Igreja Matriz de São Domingo das Torres e quando morreu foi enterrado nela, e sua esposa, dona Cândida, também.
                 2°; Citando, novamente, Raulino Reitz: Durante a guerra federalista de "1893", lá no Espigão de Barrro no Grande Araranguá, hoje município de Praia Grande _  SC, Praia Grande que na época era município de São Domingo das Torres _ RS, que os "pica- paus" (governistas, republicanos) e os "maragatos" (oposição, federalistas) tinham, também, os seus adeptos.
        E  lá  José Rodrigues da Silva, um possível inocente e simpatizante  maragato, velho e doente, foi tirado da cama pelos pica-paus do general Artur Oscar, trazido com requintes de crueldade, estaqueado nas dunas de Torres que naqueles tempos ameaçavam invadir a cidade, é cruelmente degolado. José Rodrigues da Silva, pelo que parece era filho do velho Neco e dona Cândida. Era, também, pai dos famosos  irmãos Rodrigues da Silva, José R S Filho, Manoel e Gordiano Rodrigues da Silva entre outros e que teve, também, filhos com uma mulher preta (Dindinha Velha).
          Conforme João Barcelos da Silva, que entrevistou descendentes diretos de José Rodrigues da Silva Filho, filhos, netos e bisnetos, o parente executado foi enterrado nas dunas da Praia da Cal, entre a Lagoa do Violão e o Morro do Farol, possivelmente as pressas. É bom lembrar que o Morro do Farol naquele tempo não tinha farol.
          "Eu digo que, possivelmente foi enterrado em uma cova rasa, e aí o corpo estufou, e aí a terra não o aceitou. E quanto rejeitado pela água e o fogo é como disse o  Grande Mestre Guimarães Rosa: Lá, no Grande Sertão, o povo quando conta a sua história "fantaseia".
           Existe no Registro Civil das Pessoas Naturais de Torres um óbito de um José Rodrigues da Silva, viúvo com "66"anos de idade, natural do Rio Grande do Sul, de cor ignota, sem documentos de identificação, filiação e residência desconhecida  e datado de "21/10/1898". Morreu de moléstia ignorada, sem assistência médica. Os médicos Carlos Augusto Weelausen e Pedro Ferreira Porto atestaram  o óbito e o corpo foi enterrado no cemitério desta "Villa". Foi declarante José Rodrigues da Silva Filho.
            Eu pergunto: Teriam as dunas de Torres, tocadas pelos ventos, exposto o corpo de José Rodrigues da Silva  mumificado naturalmente quase "4" anos após a sua trágica morte e gerado a lenda do homem seco da Igreja Matriz? _  Eu mesmo respondo: É possível que sim.
               3°;  Há uma terceira hipótese que diz que seria o padre José Lamônaco o homem seco da Igreja Matriz. Ledo engano. A lápide do padre ficou famosa  no antigo, extinto (patrolado em meados da década de"1970")  cemitério do Morro do Farol pelo fato de nela existir uma placa com os seguintes dizeres:  Saudades de sua filha (Ennio Porto, João Dalolli, Heitor Carneiro e tantos outros).
             4°; Há, também, a hipótese de que o homem seco da igreja seja a imagem sacra de Nosso Senhor Morto fora da cruz o qual era carregada pelos fiéis nas procissões e guardado na igreja dentro de uma caixa.
             Os restos mortais do padre Lamônaco até podem ter sido recolhidos, depois de algum tempo do seu sepultamento, mais ou menos ("1970") à igreja. Mas isto é outra estória. Ênnio Porto _  crônica 02/01/2004 publicada em 06/04/2011 em: www.torres-rs.tv
            Mas no mesmo ano do óbito de José Rodrigues da Silva, "anno domini 1898", o polêmico padre e político governista (Castilhista) Lamônaco construiu a torre da igreja; ele era o pároco e é bem provável  que tenha benzido o cadáver mumificado naturalmente, encontrado nas dunas que naquela época estavam em constantes movimentos e invadiam a vila de de São Domingos das Torres. Pode daí ter gerado a confusão que o padre seria o homem seco da igreja.
            Conclusão:
           O somatório desses quatro itens, para este pobre escriba, foram os fatos que geraram a Lenda do Homem Seco da Igreja Matriz de Torres. Manoel Rodrigues da Silva enterrado na Igreja Matriz é um fato histórico; José Rodrigues da Silva degolado em "1894" é outro fato histórico e os parentes dizem que ele foi enterrado nas areias da Praia da Cal. O óbito de um José Rodrigues da Silva lavrado em Torres em outubro de "1898" nos fazem pensar na possível mumificação natural. Nesse tempo o padre Lamônaco era o pároco, também um fato histórico.  A imagem sacra é o símbolo maior e algumas crianças do passados são os velhos do presente em cujas mentes saudosas ainda ecoa a lenda.
         
            Como se vê, o causo foi contado e recontado gerando um fato lendário, baseado em fundamentos históricos, que deve ter encantado os adultos e espantou as crianças do último século do milênio que passou e por isso eu clamo ao povo torrense:
            .
                                         Não  Deixem a Lenda Morrer.

            Notas:
            1°;  A partir ano de "1911", quando da morte do polêmico padre e político Lamônaco, o segundo novo pároco se chamava José Silva. Esse padre, conforme o historiador José Krás Selau, era um simpatizante do espiritismo e  por isso não foi compreendido pela sociedade católica torrense. Foi praticamente expulso da cidade e com ameaça de levar uma surra se voltasse. Dizem que quando foi embora chamou o povo de ignorante e rogou uma praga para que Torres não evoluísse.
           2°; Hilda Zimmermann, ecologista internacionalmente conhecida, fundadora da AGAPAM, veranista, disse em seção solene na câmara de vereadores da cidade: Torres não evolui porque tem praga de padre.
        3º;  Paulo Serafini, engenheiro eletrônico, veranista: no extinto jornal "4 estações" disse, ironizando a classe política torrense  que Torres tinha praga de padre.
             4°;  Citando novamente a professora Angelina: Padre José Silva teria rogado a praga assim: "Torres tu és e de Torres não passarás e o porto não há de sair". E o porto das Torres, após quatro tentativas, realmente não saiu. A primeira tentativa, no império, com Pedro ll; a segunda na República Velha com Deodoro da Fonseca e depois duas vezes com Getúlio Vargas.

                                                     Pesquisas iniciais João Barcelos da Silva
                                                     Colaboração        Luiz  Gonzaga  Inácio