segunda-feira, 4 de maio de 2020

Homens ao Mar


HOMENS AO MAR 
O Nauta e a Senhora1

Bento Barcelos da Silva
Incerto nauta por feios mares
Onde se estende névoa sombria
Se encosta ao mastro, descobre a fronte
E reza baixinho: Ave Maria _ Fagundes Varela

Irê dos Santos Cardoso (05/07/1944_02/05/2020) foi um menino pobre que muito cedo conheceu o mar. Nasceu pescador na região baixa do Vale do Mampituba. É filho de outro pescador, Manoel Porfírio Cardoso, e uma dona de casa, Erma Apolinário dos Santos. Muito jovem tornou-se salva-vidas e depois soldado da Brigada Militar. Como salva-vidas estava entre os melhores. Além de ótimo nadador era aplicado; tinha técnica, resistência e coragem. Em período de férias da corporação, volta ao grande lago salgado. Se junta com pescadores profissionais e agora é um nauta de um barco pesqueiro que em dia tranquilo, se afasta da foz como num parto, arredando as pequenas vagas e em busca do alto mar. Irê foi à procura de um grande pescado. Queria fazer presente a um amigo. O mar e o tempo prometiam. Porém, lá muito longe da costa, aquilo que parecia ser uma pescaria festiva, para um soldado em férias, tornou-se um imenso pesadelo para toda a tripulação. Netuno, o deus dos mares e das tormentas, manda e rege sobre eles uma tempestade. Um Nordestão com a fúria de um verdadeiro filho de Tifão, o pai dos ventos violentos, que varre o mar e levanta ondas com mais de dez metros. O barco está tão longe da terra que de lá se vê o Sol, quando finda a jornada, se esconder no oceano. Tão longe no mar que lá a meia noite é mais quente do que o meio dia e o meio dia, portanto, é mais frio do que a meia noite. O barco com sua tripulação se arrasta e, sob o comando de mãos experientes, tenta se aproximar da costa. Porém, para desespero de todos, o motor da embarcação "pifa" e perdem também a comunicação pelo rádio. O barco com sua tripulação fica muito além da ilha dos Lobos e lança âncora, mas balança como uma casca de noz. Não são vistos da terra e os dias passam muito devagar. O terrível filho de Tifão não descansa. Sopra cada vez mais forte. Netuno, que é um deus violento, ri com crueldade.
O comandante pede tranquilidade à tripulação. Sabe, por experiência, que quanto mais forte a tempestade menos tempo ela dura. Não queria saber de aventuras: “Quando a tormenta passar, um outro barco virá em nosso socorro”, complementou. Era um recado indireto para o pescador temporário. Ele conhecia bem o novato tripulante. Porém, Irê, com disciplina militar, se comporta tão bem quanto os outros marinheiros pescadores; mas é por pouco tempo. A comida e a água ficam escassas, e ele é um glutão. Precisa de muita energia para manter saudável o seu corpo forte e sadia a sua mente brilhante. Pensa também nos seus companheiros. E pensa grande. Planeja uma fuga para o próximo amanhecer. Quer buscar socorro para todos. Sabia que com pequena boia atada à cintura e com sua experiência de salva vidas, as ondas o levariam para a costa. Contava com a sorte e proteção da “Senhora”, sua madrinha. Um pouco antes do Sol nascer, sem ninguém na proa para servir de testemunho, se benze e se lança ao mar. A água gelada é um choque que o assusta, mas não tem mais como voltar, e nem quer. Se benze outra vez e se assusta novamente. Vozes sufocadas pelo vento berrante e pelo estalar dos banzeiros o chamam pelo nome. É Osmar, outro pescador que, às ocultas, o estava “negaciando”. Vem espanando na água como um cachorrinho. O afoito e corajoso Osmar era muito jovem, mas não sabia nadar. A partir desse momento, as coisas complicadas se multiplicaram em um infinito. Novamente Irê se benze e dá guarida, na pequena boia, ao seu companheiro de infortúnio.

No mar há tanta tormenta e há tanto dano.
E tantas vezes a morte é apercebida _ Camões

Agora temos dois homens perdidos num mar revolto ao sabor das gigantescas ondas e ouvindo o silvo, como um chicote, de um vento aterrador. As lentas horas passam muito devagar. Quando elevados, nas cristas das ondas crespas e espumantes, veem o brilho do Sol riscando o céu em um horizonte distante. O barco já é apenas um ponto que cambaleia em um imenso deserto de águas. Algum tempo depois uma serra no lado oposto. Mais tarde pequenas torres e uma cidade que desperta. Os pescadores estão exaustos e muito distantes em mar aberto. Osmar pensa em desistir e largar a boia. E, num cavado, entre as enormes ondas ele diz soluçando: Eu vou ficar e tu segues. Tens Família e eu não posso atrapalhar. Irê o segura, com seus braços fortes, contra a boia e retruca: Não faça isso: “Nossa Senhora vai nos ajudar.” De novo, em um crista que os eleva, vê as torres maiores e mostra para o amigo que quer desistir, e repete: “Nossa Senhora vai nos ajudar.” Outra vez num cavado, com a humildade dos fortes, emocionado, chora e reza baixinho: Ave Maria. Cristas e cavados velozes se repetem em períodos curtos, contudo o tempo insiste em passar devagar. Em um cavado, entre ondas, vê somente um pequeno e distante Sol, envolto por lágrimas e neblina, que os espia do alto no seu eterno e lento movimento. Numa outra crista vê céu e mar sem limites. O barco, há muito tempo, perderam de vista. Eles são como um cisco caído da carruagem de Netuno e arrastados pelas águas tempestuosas. Depois de um tempo que parecia não ter fim, o gigante Irê sente a terra embaixo de seus pés. “Estamos chegando:” grita para o companheiro meio desfalecido. Viu muito próximo a Pedra Chata a sua esquerda. Mas Netuno brinca, e lança sobre eles uma onda de recuo que os devolve para as profundezas. Vê a Pedra Chata se afastar e passa por ela ao largo. Ela, a Pedra, agora está a sua direita. Finalmente seus pés outra vez encontram terra firme. Agora é para valer. Se arrastam e caem na areia onde o mar, que tanto e por tanto tempo os fustigou, já nem lambe seus pés. Somente o vento forte ainda os açoita. Passaram mais de cinco horas e foram arrastados pela tormenta por quase trinta quilômetros. Irê tem forte lesão em uma das pernas causada pelo atrito da corda atada a sua cintura que prendia a pequena bóia. São socorridos por um carroceiro que se dirigia para o centro da cidade. Depois um automóvel os leva até os familiares e amigos que aflitos os esperavam, na foz do rio, rezando e olhando para o mar. Em seguida, após o relato do Irê, um robusto barco em missão de alto risco, parte com seus heroicos marinheiros em socorro dos que estavam perdidos. Leva comida, água e um mecânico a bordo. Sabem também que terão de ficar por lá até o fim da tempestade. Contudo, após a tempestade, a calmaria. Depois dois barcos apontam no horizonte para em seguida, “irmanados” e sem vítimas, entrar na barra e lentamente, e em festa subir o rio. Após, Netuno em sua carruagem, volta para o seu reino no fundo do mar e arquiteta outras tempestades. 
Este modesto trabalho é uma homenagem a Irê dos Santos Cardoso que já não esta mais entre nós, porém tornou-se uma história lendária na nossa terra para ser  sempre contada pela nossa gente.


Notas e observações
Relatos de Irê para este escriba e contador de histórias em julho de 2015. O feito ocorreu em meados de setembro de 1983; O defeito no motor do barco era apenas o cabo da bateria que tinha se rompido; Ondas de dez metros correspondem a ventos de mais de 60km/h conforme escala de Beaufort que quantifica os ventos. O jovem Osmar, após ser bem tratado pela família de nosso herói (banho,  refeições e roupas) parte para sua terra, Laguna e nunca mais se ouviu falar nele. Irê dos Santos Cardoso foi homenageado na Câmara Municipal de Porto Alegre no mesmo ano; O feito heróico foi noticiado no Jornal Zero Hora pela jornalista Margareth de Paula. Colaboram com esta matéria: Aline Barrim Bianch e Adriano M. Teixeira _ Daka. Colaboração especial de Luiz Alberto Bach _ Gigio, que foi cozinheiro em alto mar.

1          Publicado no livro Torres História em Crônicas _  Volume 1 _  Idealizado por Paulo César      Timm e Organizado por Débora Fernandezdez

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