Incerto
nauta por feios mares
Onde
se estende névoa sombria
Se
encosta ao mastro, descobre a fronte
E
reza baixinho: Ave Maria _ Fagundes Varela
Irê
dos Santos Cardoso (05/07/1944_02/05/2020) foi um menino pobre que muito cedo conheceu o mar.
Nasceu pescador na região baixa do Vale do Mampituba. É filho de
outro pescador, Manoel Porfírio Cardoso, e uma dona de casa, Erma
Apolinário dos Santos. Muito jovem tornou-se salva-vidas e depois
soldado da Brigada Militar. Como salva-vidas estava entre os
melhores. Além de ótimo nadador era aplicado; tinha técnica,
resistência e coragem. Em período de férias da corporação, volta
ao grande lago salgado. Se junta com pescadores profissionais e agora
é um nauta de um barco pesqueiro que em dia tranquilo, se afasta da
foz como num parto, arredando as pequenas vagas e em busca do alto
mar. Irê foi à procura de um grande pescado. Queria fazer presente
a um amigo. O mar e o tempo prometiam. Porém, lá muito longe da
costa, aquilo que parecia ser uma pescaria festiva, para um soldado
em férias, tornou-se um imenso pesadelo para toda a tripulação.
Netuno, o deus dos mares e das tormentas, manda e rege sobre eles uma
tempestade. Um Nordestão com a fúria de um verdadeiro filho de
Tifão, o pai dos ventos violentos, que varre o mar e levanta ondas com
mais de dez metros. O barco está tão longe da terra que de lá se
vê o Sol, quando finda a jornada, se esconder no oceano. Tão longe
no mar que lá a meia noite é mais quente do que o meio dia e o meio
dia, portanto, é mais frio do que a meia noite. O barco com sua
tripulação se arrasta e, sob o comando de mãos experientes, tenta se aproximar da costa. Porém, para desespero de todos, o motor da embarcação "pifa" e perdem também a comunicação pelo rádio. O barco com sua tripulação fica muito além da
ilha dos Lobos e lança âncora, mas balança como uma casca de noz. Não são
vistos da terra e os dias passam muito devagar. O terrível filho de Tifão
não descansa. Sopra cada vez mais forte. Netuno, que é um deus
violento, ri com crueldade.
O
comandante pede tranquilidade à tripulação. Sabe, por experiência,
que quanto mais forte a tempestade menos tempo ela dura. Não queria
saber de aventuras: “Quando a tormenta passar, um outro barco virá
em nosso socorro”, complementou. Era um recado indireto para o
pescador temporário. Ele conhecia bem o novato tripulante. Porém,
Irê, com disciplina militar, se comporta tão bem quanto os outros
marinheiros pescadores; mas é por pouco tempo. A comida e a água
ficam escassas, e ele é um glutão. Precisa de muita energia para
manter saudável o seu corpo forte e sadia a sua mente brilhante.
Pensa também nos seus companheiros. E pensa grande. Planeja uma
fuga para o próximo amanhecer. Quer buscar socorro para todos. Sabia
que com pequena boia atada à cintura e com sua experiência de salva
vidas, as ondas o levariam para a costa. Contava com a sorte e
proteção da “Senhora”, sua madrinha. Um pouco antes do Sol
nascer, sem ninguém na proa para servir de testemunho, se benze e se
lança ao mar. A água gelada é um choque que o assusta, mas não
tem mais como voltar, e nem quer. Se benze outra vez e se assusta
novamente. Vozes sufocadas pelo vento berrante e pelo estalar dos
banzeiros o chamam pelo nome. É Osmar, outro pescador que, às
ocultas, o estava “negaciando”. Vem espanando na água como um
cachorrinho. O afoito e corajoso Osmar era muito jovem, mas não
sabia nadar. A partir desse momento, as coisas complicadas se
multiplicaram em um infinito. Novamente Irê se benze e dá guarida,
na pequena boia, ao seu companheiro de infortúnio.
No
mar há tanta tormenta e há tanto dano.
E
tantas vezes a morte é apercebida _ Camões
Agora
temos dois homens perdidos num mar revolto ao sabor das gigantescas
ondas e ouvindo o silvo, como um chicote, de um vento aterrador. As
lentas horas passam muito devagar. Quando elevados, nas cristas das
ondas crespas e espumantes, veem o brilho do Sol riscando o céu em
um horizonte distante. O barco já é apenas um ponto que cambaleia
em um imenso deserto de águas. Algum tempo depois uma serra no lado
oposto. Mais tarde pequenas torres e uma cidade que desperta. Os
pescadores estão exaustos e muito distantes em mar aberto. Osmar
pensa em desistir e largar a boia. E, num cavado, entre as enormes
ondas ele diz soluçando: Eu vou ficar e tu segues. Tens Família e
eu não posso atrapalhar. Irê o segura, com seus braços fortes,
contra a boia e retruca: Não faça isso: “Nossa Senhora vai nos
ajudar.” De novo, em um crista que os eleva, vê as torres maiores
e mostra para o amigo que quer desistir, e repete: “Nossa Senhora
vai nos ajudar.” Outra vez num cavado, com a humildade dos fortes,
emocionado, chora e reza baixinho: Ave Maria. Cristas e cavados
velozes se repetem em períodos curtos, contudo o tempo insiste em
passar devagar. Em um cavado, entre ondas, vê somente um pequeno e
distante Sol, envolto por lágrimas e neblina, que os espia do alto
no seu eterno e lento movimento. Numa outra crista vê céu e mar
sem limites. O barco, há muito tempo, perderam de vista. Eles são
como um cisco caído da carruagem de Netuno e arrastados pelas águas
tempestuosas. Depois de um tempo que parecia não ter fim, o gigante
Irê sente a terra embaixo de seus pés. “Estamos chegando:”
grita para o companheiro meio desfalecido. Viu muito próximo a Pedra
Chata a sua esquerda. Mas Netuno brinca, e lança sobre eles uma onda
de recuo que os devolve para as profundezas. Vê a Pedra Chata se
afastar e passa por ela ao largo. Ela, a Pedra, agora está a sua
direita. Finalmente seus pés outra vez encontram terra firme. Agora
é para valer. Se arrastam e caem na areia onde o mar, que tanto e
por tanto tempo os fustigou, já nem lambe seus pés. Somente o vento
forte ainda os açoita. Passaram mais de cinco horas e foram
arrastados pela tormenta por quase trinta quilômetros. Irê tem forte lesão em uma das pernas causada pelo atrito da corda atada a sua cintura que prendia a pequena bóia. São
socorridos por um carroceiro que se dirigia para o centro da cidade.
Depois um automóvel os leva até os familiares e amigos que aflitos
os esperavam, na foz do rio, rezando e olhando para o mar. Em
seguida, após o relato do Irê, um robusto barco em missão de alto
risco, parte com seus heroicos marinheiros em socorro dos que estavam
perdidos. Leva comida, água e um mecânico a bordo. Sabem também
que terão de ficar por lá até o fim da tempestade. Contudo, após
a tempestade, a calmaria. Depois dois barcos apontam no horizonte
para em seguida, “irmanados” e sem vítimas, entrar na barra e
lentamente, e em festa subir o rio. Após,
Netuno em sua carruagem, volta para o seu reino no fundo do mar e
arquiteta outras tempestades.
Este modesto trabalho é uma homenagem a Irê dos Santos Cardoso que já não esta mais entre nós, porém tornou-se uma história lendária na nossa terra para ser sempre contada pela nossa gente.
Este modesto trabalho é uma homenagem a Irê dos Santos Cardoso que já não esta mais entre nós, porém tornou-se uma história lendária na nossa terra para ser sempre contada pela nossa gente.
Notas
e observações
Relatos
de Irê para este escriba e contador de histórias em julho de 2015. O feito ocorreu
em meados de setembro de 1983; O defeito no motor do barco era apenas
o cabo da bateria que tinha se rompido; Ondas de dez metros
correspondem a ventos de mais de 60km/h conforme escala de Beaufort
que quantifica os ventos. O jovem Osmar, após ser bem tratado pela família de nosso herói (banho, refeições e roupas) parte para sua terra, Laguna e nunca mais se ouviu falar nele. Irê dos Santos Cardoso foi homenageado na
Câmara Municipal de Porto Alegre no mesmo ano; O feito heróico foi noticiado no Jornal Zero Hora pela jornalista Margareth de Paula.
Colaboram com esta matéria: Aline Barrim Bianch e Adriano M. Teixeira _ Daka. Colaboração especial de Luiz Alberto Bach _ Gigio, que
foi cozinheiro em alto mar.
1 Publicado no livro Torres
História em Crônicas _ Volume 1 _ Idealizado por Paulo César Timm e Organizado por Débora Fernandezdez
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